terça-feira, 6 de julho de 2010

A Quarta Etapa


Encontramo-nos todos no parque de estacionamento à entrada da ponte nova de Valença. Um parque com três camiões encostados, imagino com os condutores dormindo esperando que o dia nasça para seguirem cada qual, o seu destino. Sem iluminação e como a noite ainda ditava leis, dificilmente conseguíamos distinguir quem quer que seja.
Depois da verificação de que todos retomavam a caminhada final rumo a Santiago, ainda bem longe, mas perto do coração desta gente já rendida à fé e ao mártir. Seguimos atrás do guia numa dúzia de automóveis que abriam caminho pela noite ainda cerrada rumo ao inicio da caminhada.
O aeroporto com as suas imponentes obras de beneficiação, foi a traição para o engano no percurso. E num desce e torna a subir, de encontro à rotunda de todas as complicações, lá permanecemos num dar à volta consecutivo, para esperar que quem trocou a direcção, voltasse ao ponto onde se descarrilou do comboio automóvel.
Voltamo-nos a juntar com o dia a raiar e sem tempo a perder já, que era necessário recuperar do tempo em que andamos às voltas como o cão tentando apanhar a cauda. Rapidamente tomamos o café e no briefing a anteceder o inicio de mais uma caminhada, o prior vincou bem o papel por nós já desenrolado até aqui e mais uma vez, lembrou que toda esta envolvência não pode deixar de incorporar o retiro espiritual e lançou o lema deste dia – Quem é o outro?
E incutiu-nos a caminhar uns momentos em silêncio e reflectir no quem é o outro.
Quem é o que caminha ao nosso lado.
Quem é o que nos faz sentir algo no dia-a-dia.
Frases chavão que nos iriam acompanhar nas longas horas de caminhada, como já o mesmo fizera nas etapas anteriores, onde já algo nos tinha tocado com o - Quem sou eu? – Quem é Deus para mim?
Depois de um suspiro profundo, acontece sempre que o prior nos devolve o lema para nos acompanhar a cada inicio de caminhada. Toca a dar à perna retomando o final, onde ainda bem fresco a nossa memória recorda os momentos de uma etapa que deixou a sua marca.
Entramos novamente pelos campos, onde o milho é rei e senhor do verde semeado pelo homem.
Mas algo esperava por nós e num céu que se mostrava manchado de nuvens brancas e negras vindas do lado do mar, a chuva apareceu para nos acompanhar todo o dia.
Primeiro os pinguinhos a desenhar formas no caminho que a nossa mente sempre virada para o chão tentava dar um sentido.
Depois certinha e miudinha. Obrigando-nos a colocar os impermeáveis e lá caminhamos meio indiferentes a este contratempo. Até demos graças, a Santiago (lá está o Santo a entrar no peregrino), porque refrescou o tempo e não molhou mais que o impermeável deixando os ossos secos sem argumentos para reumatismos e artrites.
A chuva não deixa muita margem para conversas e toca a seguir os marcos que nos indicavam o caminho e também a partir de certa altura os quilómetros que faltavam para o grande dia.
As horas passavam mas a chuva continuava!
Meia preguiçosa já que era pouco sentida, mas mesmo assim molhava. O grupo na sua maioria envergava os impermeáveis, que cobrindo as mochilas davam um aspecto a muitos de nós de corcundas e era engraçado olhar para o lado e ver colegas a caminhar com aquele volume sob as costas.
Eu com o meu graciosamente emprestado por um amigalhaço que vem protegido a dobrar, já que sabe o que lhe espera, e também descobriu que eu só não deixo a cabeça em casa porque ela anda atarraxada ao corpo. Lá seguia no grupo dos primeiros para que o andamento fosse mais rápido, porque a hora da chegada tinha que ser cumprida senão corríamos o risco de ficar sem comer.
Entramos em Pontevedra e descobrimos o seu coração, como querendo dizer, descobrimos a sua Catedral.
Escusado será dizer que era local obrigatório para a catequese do prior!
São estas paragens, normalmente em locais de culto que nos eleva de encontro à realidade da fé.
De encontro à realidade do porquê de todo este esforço.
De encontro à realidade da esperança em encontrarmos a luz que vai aquecer a enorme etapa que se iniciará logo que esta termine.
E no final tínhamos já muitas respostas para o objectivo que todos pretendíamos, porque a mensagem do prior estava a ser captada.
Só que não estava a ser posto em prática um dos objectivos traçados desde o inicio. Ou seja, a junção do grupo saído dias antes, para fazerem o percurso seguido e era suposto, juntarem-se connosco, para terminarmos a odisseia no domingo.
O grupo não dava ares de ser visto, nem agora que já não havia paciência para mais esperas para ver se os visionávamos. Nem desde o inicio, com paragens longas para ajudar ao reagrupamento.
Ficou uma vez mais o prior com a missão de os trazer até nós e sem tempo para mais esperas partimos guiados pelo colega António, amante das cantorias e fiel seguidor do prior na condução deste rebanho.
Encontramos a via-férrea, mano a mano com os caminhos por nós trilhados. E durante umas boas horas fomos visitados pelo comboio que velozmente ia e vinha num traçado há tantos anos programado.
Obras a todo gás indicava que o TGV seria uma realidade a curto prazo na vizinha Espanha e nós registávamos esse momento.
E a chuva continuava já bem chatinha para todos nós. Dava a sensação que parava e logo nós tirávamos o impermeável. Mas momentos depois lá estava a danadinha a encharcar o calçado já cheio de amolgadelas que apertavam os pés e desesperavam quem já os tinham em tão mal estado.
Cruzamo-nos com um grupo de garotos de chapéus vermelhos à grilo, talvez um colégio já que embora alguns fossem acompanhados pelos pais, a maioria iam guiados pelos educadores. Que indiferentes à chuva cantavam alegremente em honra de Santiago.
Por fim a etapa estava quase no fim!
Em três mil passadas estaríamos a saborear uma refeição de encher o estômago já a reivindicar atenção e comodamente instalados a dar descanso ao corpo que tanto necessitava.
Haja fé gritávamos nós e lá enfrentamos os caminhos com água, entrando pelos campos a dentro para a evitarmos.
Subíamos carreiros de cabras com redobrada vontade já que o fim era uma realidade.
Caminhávamos por baixo de ramadas com as uvas ainda verdes, esperando por mais um mês para amadurecerem e servirem para espremer o néctar tão suave durante a refeição.
Os da frente paravam debaixo de uma enorme árvore, num abrigo natural para que os mais atrasados pudessem sentir o grupo todo unido.
E num grito de união, já que o prior andava perdido a juntar as ovelhas do grupo que ficou de se juntar a nós após os dois primeiros quilómetros e, agora já no fim nem sinal deles. Caminhamos rumo ao restaurante com o nariz bem esticado, tentando farejar o cheiro a comida, mas ainda só farejávamos laminha e pedras escorregadias.
O repasto foi o que se podia arranjar nestas circunstancias e o local onde finalmente os dois grupos se juntaram e puderam ver as caras, uns dos outros.
E foi no briefing que fazia o balanço do dia, num colégio dirigido por freiras, que estalou o verniz e numa troca um pouco acesa de galhardetes, o grupo dos quinze, tentou justificar o injustificável, numa choradeira de chorrilhos escusados, que só terminou com a voz de comando do prior.
Prior que evitando propositadamente interferir directamente, colocou-nos à prova e foi o que se viu. Que o obrigou num tom a raiar a raiva a levantar serias questões das quais destaco as directamente vincadas em nós: “não aprendemos nada! Buscamos unicamente os bodes expiatórios……”.
Resumindo; levamos uma lição de moral, que nos fez regressar cabisbaixos ao local de descanso. Onde nos acomodamos em beliches e dormimos. Aproveitando as poucas horas, porque como sempre pela manhã coberta de escuridão, o prior reúne os peregrinos procurando as palavras certas para os acompanhar no seu destino.

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