segunda-feira, 28 de junho de 2010

A Terceira Etapa




Já não é novidade o levantar ainda a noite não acordou, desta vez com a maioria do grupo esticados e enrolados nos sacos camas, num espaço com todas as comodidades normais para tanta gente, gentilmente cedido por espanhóis abertos ao simbolismo da nossa caminhada e com o esforço do nosso líder, valha a verdade incansável para que nada falte e, toca a desbravar caminho porque esta jornada não será pêra doce e como mais à frente se constatará, irá ser dura, bastante dura.
Cedo alguém toma posição e num passo acelerado decide ir por ali fora e enfrentar o asfalto, que seria o nosso companheiro para mal dos nossos pecados a maior parte desta etapa.
Também cedo se notou que o grupo iria se desmembrar, ainda o sol não esticara os seus raios e compreensivelmente formou-se mini grupos numa caminhada a desabrochar tensões.
Logo aqui se fez notar a presença do líder deste rebanho que ameaçava juntar algumas ovelhas tresmalhadas e logo, logo encontramos a Natureza para nos purificar com o ar matinal e toca a seguir o homem de cajado benzido que com a sua batida marcava o ritmo.
O asfalto não nos largava e o café tardava em ser engolido de um só trago, já que as horas avançavam e não havia meio de encontrar um raio de uma cafetaria aberta.
Por fim depois de uma hora a percorrer uma avenida que nunca mais se via o seu fim; onde por vários minutos num trio, falamos da hipócrita sociedade barcelense, que nada olha para as iniciativas de uma paróquia ao serviço de quem lhe bata à porta, porque elas estão sempre abertas, para quem desejar ter um alívio de consciência, ou uma ajuda mesmo sem ser de penitência. Valeu-nos a sorte, porque foi percorrida ainda o sol se escondia nos montes que mais tarde seriam o martírio para muitos destes heróis destemidos.
Lá surgiram os cafés tão bem-vindos, onde o grupo se repartiu por mais de um, para não esgotar os croissants comidos de faca e garfo.
De estômago cheio e semblante satisfeito, toca a andar e bater o cajado por esse asfalto fora, porque ainda a etapa é uma criança.
O sol desponta agora ferozmente, como se nós lhe tivéssemos feito algum mal. O grupo já não se consegue unir. Alguns começam a dar sinais de se resignar, perante as mazelas que lhes abrem chagas tanto físicas como emocionais.
Outros, já com o físico a roçar-se contra o canto da estrada, junto aos muros das casas quase todos fechadas, continuam com a força espiritual que ali os trazem.
O último troço antes da missa, é a tortura ao vivo. São dois quilómetros de uma subida que nunca mais termina. Os da frente deixam-se apanhar por dois ou três que tentam levar os outros para que a Eucaristia, seja iniciada à hora marcada. E quem diz Eucaristia diz, o momento de encontro com Deus e o descanso tão merecido.
A água escasseia e algumas garrafas estão tão secas como a nossa garganta. Duas pancadas num portão e logo é entregue água tão fresca, que a senhora merece dois beijos de agradecimento. Mas a subida ainda não terminou e cada vez mais se sobe e nunca mais finaliza.
O sol não deixa ver. E os chapéus enterrados na cabeça tapam os olhares de ver tão perto o prior a chamar, pelos primeiros que aparecem no final desta subida maldita.
A missa aproxima-se, o momento é de respeito e de oração!
Um adro de uma capela, pequena para tanta gente que se arrasta para uma sombra, depois daquele tormento. Obriga a improvisar a Cerimónia ao ar livre e num altar que faria Cristo saudar a beleza simples daquele espaço. Deu-se, inicio a uma missa que vai ficar nos corações de todos os que assistiram.
A fé! O encontro com nós mesmos! A procura de um sinal! São momentos que os Caminhos de Santiago nos proporcionam.
Mas esta missa revestida de uma simplicidade tão maravilhosa, tão íntima que nos tocou bem fundo a cada oração dita em coro.
A cada cântico nascido no momento por quatro jovens que alegram as pausas das caminhadas.
O momento da comunhão com um toque que nunca tinha tido o privilégio de partilhar e mais se acentuou, na hora do amém como agradecimento de tão significativo acto.
Foi a frescura e o enorme alento para enfrentar novas e dificílimas subidas e perigosas descidas, feitas dois a dois para nos amparar nas possíveis, mas graças a Deus nulas quedas que felizmente até agora nada que mereça ser anotado.
A tarde iniciava-se e nós toca a percorrer as duas horas e meia que faltavam para finalizar esta etapa e regressar a casa.
O sol, esse, maldito (só cá para nós, porque naquele momento não era bem-vindo), mastigava a nossa secura e colava os poucos agasalhos aos corpos escuros do pó e vermelhões da canícula.
Refrescamo-nos no albergue para carimbar a nossa última passagem como o derradeiro consolo para esticar as pernas antes da chegada e, dar uma oportunidade aos que estão desesperados dos pés, com bolhas em várias partes. Para aí se aguentarem e esperarem pela ajuda que está sempre no sítio certo, á hora certa.
Mais alcatrão mais dificuldades para alguns. Enfim para todos!
O carro de apoio com um casal de uma dedicação de louvar ainda me espanto, com gente deste calibre. Transporta os necessitados de cuidados, esperando que alguns deles voltem a juntar-se ao grupo, o que acontece.
Os restantes enfrentam o sol no seu pico e todas as dificuldades que surgem. Sobem e descem os últimos quilómetros que aparecem e mesmo vendo o autocarro esperando por aqueles que não conseguem fazer os dois últimos quilómetros, valha-nos a verdade é terrível esta etapa. Existem pessoas que o físico já é empurrado pela crença do objectivo que os faz ir em frente e encontrar o fim desta jornada.
Esse mesmo autocarro é ignorado! Enfiamos o chapéu bem fundo para nem o ver e lá continuamos rumo ao final, que é ali já e nunca se deslumbra.
Descemos o monte, mesmo aqui não corre brisa, parece que Deus nos está a tentar pôr à prova todas as nossas capacidades. Ao mesmo tempo que deslumbramos a baía de Vigo, que nos acompanha na descida e contemplamos toda aquela imensidão de água.
Imagino-me a saltar por sob o mato e descendo, descendo, para terminar num mergulho prolongado de encontro aquela frescura….
E descendo e descendo, para a realidade, firmo os pés numa força para não dar uma queda de encontro ao fim que continua a ser já ali e, finalmente chego ao olhar do prior imponente na sua estatura de quase um metro e noventa, que nos indica o caminho para o autocarro através do cajado, ele também de rastos, mas com um sorriso que nos embala, lembrando-me uma sua célebre frase: “ A vida é uma arte”.
E momentos depois deixamos o local de encontro da próxima etapa, que nos leva ao merecido almoço/jantar, sendo mais um momento para acertar agulhas para as últimas caminhadas que no fim-de-semana nos levará, para aí sim. Chegarmos todos a Santiago.

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