segunda-feira, 28 de junho de 2010

A Segunda Etapa



Aqui estou todo dorido!
Pudera, caminhei horas e horas. Em muitas ocasiões marchei e outras mais, talvez voasse. Para fazer perto de setenta quilómetros, num calor de queimar os neurónios, mas estou feliz, acreditem estou a ser sincero: mesmo feliz!
Depois de duas etapas que nos levaram até bem perto da baía de Vigo, desejando toda aquela frescura da água como uma bênção, para todo o calor que carregávamos, mas ainda longe do objectivo primordial; a chegada a Santiago que ficou para o próximo fim-de-semana, onde lá chegaremos se Deus quiser, na apoteose final, de um percurso cheio de emoções.
Bem cedo nos encontramos, para retomar a caminhada. O dia ainda não nascera e a noite era nossa companheira, no aquecimento do físico para a segunda etapa que nos ia levar a Tui.
Juntou-se a nós um peregrino de câmara às costas, na perspectiva de um documentário sobre os caminhos de Santiago como projecto a curto prazo. Lá incorporou o nosso grupo para concluir tão relevante propósito.
Caminhamos ainda ensonados pelas poucas horas de sono e de um momento para o outro, bem os abrimos já que tínhamos chegado ao começo da Serra da Labruja. Segundo muitos, um dos troços com mais dificuldades, mas que para nós foram dos mais entusiasmantes e espectaculares até ao momento.
Ali, calcorreando aqueles caminhos abertos pelo meio da serra, onde em fila indiana nos desviávamos das naturais dificuldades do percurso, salpicado de socalcos bem desnivelados, obrigando-nos a caminhar em ziguezague, subíamos com prazer o dorso da serra que mais nos aproximava de peregrinos.
A Natureza impunha-se, com o verde como cenário de eleição e sem vestígios de contacto humano, a não ser o do grupo. Assim andamos uma hora carregados de prazer em ali estarmos e sentindo todos nós a adrenalina da fé que todos procuramos em reencontrar.
A pausa para recuperar o fôlego e aproveitar para umas breves palavras do prior, sempre alerta com o propósito de não nos esquecermos que o turista não se conjuga com a espiritualidade do significado dos Caminhos de Santiago, foi propositadamente guardada para junto à Cruz dos Franceses. Onde ficamos a saber o local, que a população da época, emboscou os retardatários do exército de Napoleão, na invasão de 1809. Numa acção que demonstrava o espírito de uma comunidade em escorraçar o inimigo que invadia o país que lhe pertencia.
Como nem só da caminhada e de constantemente o cameraman: é de enaltecer todo o esforço que o homem carregava, não só a nível de concluir o trabalho por ele delineado, como com o peso do material horas e horas carregado. Estrategicamente situado para nos filmar, já com o grupo alargado num cordão a deixar muitos de mão estendida, mas já sem possibilidades de o agarrar. É o momento do nosso líder aproveitar para a pausa de agregar o grupo e proporcionar o momento de nos conhecermos ainda melhor.
E numa apelação do prior para os últimos quilómetros que antecediam o almoço, resolveu nos juntar dois a dois e darmo-nos a conhecer numa intimidade de troca de impressões, nos variadíssimos aspectos da nossa vida.
Falamos dos nossos defeitos (poucos, porque todos dizemos que são menos que os dedos de uma só mão).
Das nossas virtudes ao longo dos anos que já carregamos nos ombros.
Da família e dos anseios para que os nossos filhos sigam os princípios que nos guiaram para lhes dar um lar.
Dos objectivos profissionais, onde a porta nunca se fecha para quem busca novos desafios.
E neste clima intimista de um amigo que está ligado juntamente com a família, à fé e dela fala com prazer e alegria, que para mim é o que retrata mais o peregrino no seio do longo grupo. Chegamos ao almoço para alimentar o organismo e descansar o espírito.
Não há tempo a perder e toca a levantar o rabinho das cadeiras para enfrentar os últimos quilómetros sob um calor abrasador, porque parar era morrer para o objectivo pretendido. Assim atravessamos a fronteira, hoje sem olhar para os lados e ser parado pelos guardas. E entrar no país vizinho, onde nem a brisa do rio, olhado de cima para baixo numa altura de fazer andar a cabeça à roda, nos refrescou para o final de uma etapa que já deixava mossa.
O espaço que mediou a visita à catedral; imponente de enormes paredes esgatanhadas de história, sepultura de santos que perpetuam a religião e de bispos que deixaram um enorme legado para a região. Jardins floridos com árvores de fruto que foi pouso de descanso de alguns minutos. Foi aproveitado pelo prior numa das alas da Catedral, para mais um momento de reflexão, e de seguida convidar-nos a falar dos nossos anseios, expostos nos buracos nas nossas vidas, não mais do que três ou quatro frases, escritas num simples bocado de papel.
E o jantar, tão aguardado para reduzir o desgaste da caminhada, foi a descontracção que tanto necessitávamos.
Aqui sentimos que para além do grupo que nos envolve, já brota uma família caminhante e nesse espírito, jantamos numa surpresa que nunca é demais louvar, proporcionada por uma equipa dedicada. Com o prior, chefe de fila de uma dúzia de voluntários já conhecidos e tão admirados.
Foram eles que trouxeram a vela para nós acendermos e darmos luz à boa disposição e por entre música improvisada por cantadores de fim-de-semana, treinados em karaoques que abundam nas mais belas esquinas. E alegria de cruzarmos a boa disposição e a fé que vai brotando a cada momento a sós que encontramos. Deixamos este local bem perto do rio e ainda tão longe do nosso objectivo, rumo ao descanso de poucas horas já, que bem cedo o galo canta, para mais uma etapa toda ela a desbravar caminho cada vez mais, a deixar Portugal já longe e para trás das costas.

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